Foto: Suziane Brugnara
Quando é que eu, ao começar o curso de Comunicação Social/Jornalismo na PUC-Minas, imaginaria que um dia eu fosse ter o privilégio de entrevistar ninguém menos que... eu mesmo? Nunca, nem no mais ousado devaneio. Bem, posso dizer que é uma experiência única. Recomendo muito. Bem, a seguir eu mesmo falo um pouquinho sobre processo de escrita, influências e sentidos da literatura. Se você nunca viu uma autoentrevista, não perca tempo!
Letra & Ficção – Quando e como surgiu essa nossa ideia de ser escritor?
Darío Bravo – Na adolescência. Grande vontade, pouca inspiração e zero disciplina. O roteiro era: uma vítima de acidente acorda com amnésia, não reconhece nada em sua vida, se deprime, coteja o suicídio, sobe à cobertura de um prédio, onde, na hora H, desiste e daí recomeça tudo... Nunca pus isso no papel, mas uma das poucas certezas que já tive na vida foi que eu deveria fazer um livro. A inércia foi quebrada quando encarei o branco espelho que é a folha de papel. E daí comecei a criar estórias e histórias. Desafio que se repete diariamente.
Letra & Ficção – Esse roteiro abortado ou jamais parido soa como uma morte/transformação que nunca aconteceu, de fato.
Darío Bravo – Soa, sim. E teve de ser assim mesmo: esse primeiro degrau da escada só existe como planta baixa mesmo. O prelúdio da ficção também é fictício.
Letra & Ficção – Como é nossa rotina de trabalho?
Darío Bravo – De segunda a sábado (às vezes de domingo a domingo), sentar na sala aqui de casa, na cadeira que menos range e que menos manca, encarar o computador tendo ao fundo uma parede. Sou uma criatura matinal e, às vezes, noturna. Dependendo da insônia, eu madrugo. Aí escrevo, reescrevo, leio, releio, corto, torno a aumentar, reviso e... termino com várias das dúvidas que eu tinha no princípio. Bem, uma hora a estória em que eu tô trabalhando se condói de mim e finge que tá pronta, e esse é o momento de largar, pra deixar maturar. Só mais tarde é que eu vou reavaliar e retomar tudo desde outra perspectiva. O ambiente de trabalho é árido como tem que ser, pois o que conta é o mergulho mental. Quanto mais profundo ele for, mais rico vai ser o diálogo psíquico. E se tem alguém que não sabe calar é ela: a psique. Ainda bem.
Letra & Ficção – De onde vem a nossa inspiração?
Darío Bravo – De muitas fontes: sonhos, pensamentos “aleatórios”, frases ditas por conhecidos ou por estranhos, reminiscências da infância, estrofes de canção, melodias, quadros pictóricos, insights, noticiário, acontecimentos testemunhados por mim dentro do ônibus, leitura de trechos de outros livros, cenas de filme. Por exemplo: uma reportagem na tevê alude à fazenda pitanguiense Ponte Alta, e me instiga a criar uma personagem devoradora de homens que viveria ali. E várias historietas do livro Mulheres que Correm com os Lobos me desafiaram: eu seria capaz de bolar um “era uma vez”, um conto de fada ou um conto de bruxa? Outro exemplo: a amiga da minha sogra contando que ela, quando criança, voltava do trabalho pra casa na companhia dos irmãos e da mãe, por uma trilha íngreme numa área rural. Às vezes eram surpreendidos pela noite e pela chuva, e a mãe escorregava na lama, caía no chão com um bebê no colo, o nenêm se perdia entre as plantas na escuridão, e eles todos tinham de ficar procurando por aquele menorzinho, e a única luz que havia era a intermitência dos relâmpagos. Tem como não escrever sobre isso?
Letra & Ficção – Não, não tem. Me diz agora: o que nós visamos ao compor uma narrativa?
Darío Bravo – Eu só consigo transpor pro papel aquilo que de algum modo me sensibiliza, que emociona, que reverbera aqui dentro de nós dois. E depois só me cabe esperar que esse registro venha a tocar alguém, um terceiro. Se trata de uma coisa bem específica, como na lógica darwiniana: pra cada flor de origami que você fizer, vai existir uma combinante borboleta de papel artisticamente dobrado, a qual vai ser atraída pra interagir com as cores, o aroma, o pólen.
Letra & Ficção – Como foi nosso primeiro contato com a literatura?
Darío Bravo – A literatura é servida primeiro em estado acústico: na oralidade daquilo que é contado pra ninar a gente. Lembro até hoje de sessões no jardim de infância, a professora correndo a cortina da sala de aula pra então projetar slides de contos de fada, acompanhados de um disco de vinil azul. Mais tarde, quando eu já andava com meus próprios olhos, me encantei com Maria José Dupré, Lúcia Machado de Almeida, Homero Homem e seu Menino de asas, Monteiro Lobato, João Carlos Marinho e seu Gênio do crime. Os irmãos Grimm. Hans Christian Andersen. Depois vieram Fernando Sabino, Carlos Drummond de Andrade, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos. Oscar Wilde. Alan Poe. Marion Zimmer Bradley com suas Brumas. Luís Fernando Veríssimo. O Perfume, de Patrick Süskind. O anônimo autor de O lazarilho de Tormes. Mia Couto. Gabriel García Márquez, o Rosa...
Letra & Ficção – Como você, nascido noutro país, qualifica a literatura brasileira?
Darío Bravo – Capaz de encantar e maravilhar. Tanto pela forma como pelo conteúdo. Não digo que é a melhor do planeta porque, pra isso, eu teria que conhecer a produção literária árabe, a persa, a japonesa, a mongol, a africana e por aí vai.
Letra & Ficção – Dentre os autores que marcaram a gente, quais viriam a se transformar em “as maiores influências”?
Darío Bravo – Houve um antes e um depois de Fernando Sabino, lido na infância e na adolescência. Houve um antes e um depois de J.R.R. Tolkien, lido na juventude. Houve um outro mundo com Oswaldo França Júnior, quando alcancei a maioridade. García Márquez entrou rasgando a alma no início da fase adulta. E Guimarães Rosa, descoberto na maturidade, propôs novos paradigmas; do tipo: Viver é perigoso; ler o Rosa, mais ainda.
Letra & Ficção – Nosso caso é o de um chileno se expressando em língua portuguesa. Quanta incompatibilidade tem aí?
Darío Bravo – Incompatibilidade? Nenhuma. Mas tensão, tem muita. Fui alfabetizado e aculturado no Brasil, portanto embora escrever em “português das Américas” não seja escrever numa língua materna, é sim um ato de se expressar no idioma de uma mãe de criação (que não é menos mãe por ser adotiva). Eu sinto em espanhol. E penso-e-sinto em língua portuguesa. E eu no meu ofício tento extrair muito de um universo que por definição é vasto. O mínimo que eu posso fazer é honrar o potencial de um léxico, de expressões idiomáticas, ditos, provérbios e afins, tudo riquíssimo. No entanto como tudo tem um preço, uma vez que o português é minha língua-ama-de-leite, o espanhol acabou relegado a um segundo plano.
Letra & Ficção – Nós nos valemos do folclore pra desenvolver alguns temas...
Darío Bravo – O folclore é um patrimônio que não tem preço. A fantasia, a crendice, o mito, a narrativa fantástica têm um colorido, um paladar, um oxigênio essenciais pra que a gente possa contrapor a uma visão intelectual e científica que não dá, nem nunca vai dar, conta de tudo.
Letra & Ficção – Como é, pra nós, lapidar um tema até que ele vire aquilo que a gente idealiza como literário?
Darío Bravo – Sempre gostei de escrever; o impulso já veio em mim de fábrica. O jornalismo foi uma mescla de curso preparatório: do professor na universidade que riscou um texto meu como se eu tivesse escrito sequências de palavrões, e que tornou a rabiscar todas as posteriores três tentativas de reescrita. Passando pelas reportagens que meus chefes criticavam, castigando a minha preguiça e instigando a redigir algo inteligível e minimamente interessante de ser lido – tudo isso foi degrau e mais degrau na escadaria que ainda tem meu pé em cima. Escrever reportagem foi essencial como treino pra escrita literária. Você quer se arriscar na ourivesaria? Tem que transpirar na marmoraria e na serralheria antes. Respondendo mais diretamente à pergunta: lapidar um tema é exaustivo, estressante, demorado. A receita que tem funcionado é ser obsessivo no fazer-refazer. Empreitada física, mental, intuitiva e espiritual que no fim acaba sendo gratificante. É algo que dá sentido (norte) e significado (existencial) a tudo. Narrar é um dos atos mais solitários que eu conheço, mas se constitui também no maior bálsamo pra essa mesma solidão.
Letra & Ficção – Temos algum projeto pro futuro? Outro livro já engatilhado, por exemplo?
Darío Bravo – Um segundo, um terceiro, um quarto. Vários. Você tá escutando esse barulho?... São eles batendo as asas dentro da gaveta. Devem alçar voo nos próximos meses.
Letra & Ficção – Me diz, por favor, que um dia a gente vai viver de literatura...
Darío Bravo – É uma questão de preposição e de proposição. Viver da literatura ainda não tá no horizonte. Em parte, hoje a gente só Vive, com maiúscula, pela literatura.