É água que não vai embora. Já engoliu a seca, regou estrada, trouxe desgraças... e continua. Sem vento e com muito prumo, a chuva não entra; assim janelas e portas podem ficar abertas. O joão-de-barro pousa no umbral. Uns chamam de oleiro. Outros veem nele casaca. Enxergo criatura forneira, que coze no bico cada tijolo que usa.
Ele se desfaz, mole já, preocupadíssimo com o derretimento que lhe cabe. Os meninos todos, piscos e até então calados, sussurraram espanto. O pássaro está virando lama. Até semanas atrás, essa meninada que agora se condói estava por aí, lançando pedra no bicho. Então por que essa pena do manuel-de-barro?
– É que chuva assim é covardia – dizem.
Cada qual tem um peso e uma medida pra covardia. E contemplo os pequenos também acocorados – por causa da chuva que semeou pântanos no quintal e tornou aquáticas todas as plantações. Os animais já procuraram um alto nestas terras traiçoeiramente planas; esperam uma arca, um Noé, uma lenda vir remando.
Ela, a chuva, não cessa o caimento. Vai nos matando aos tédios. Os pirralhos se assombram de aborrecimento. Já temem que a poeira seja um sonho, uma fábula socada até virar tesouro de pó. As crianças se abismam com o imenso silêncio dos velhos — ninguém consegue arrancar nada dessa velharia com expressão de concha, alma de molusco a subir e descer pelas paredes, num arrasto só.
De vez em quando alguém morre e apenas o jogam porta afora. Velório e cortejo acontecem na cozinha mesmo. O enterro é com a chuva: ela que carregue e se encarregue; não foi ela quem matou?
Esses céus molhados acham por mal fazer cada habitação virar continente; cada vida, uma ilhota. E os peixes vão germinando da lama. Só podem ser sementes com escama, brotos com barbatana. Primavera de peixes.
Galinhas se empoleiram no jatobá. Ficam a funambulejar nos galhos. Quando duas se encontram, ficam ali, por horas, um bico sendo espelho do outro. É desencanto da chuva. E as aves ciscam pelos troncos, parece que lembrando que o mundo teve um terreiro.
Todos os outros animais de curral estão por aí, aos longes. Numa melancolia encalhada, as reses agora pastam aos goles. Os cães, mandamos embora: fediam demais. E a sede incurável que os faz beber dos próprios pelos, sem parar?
As árvores estão acabrunhadas como mulheres idosas, com as raízes puxadas pra cima: querem poupar a barra da saia.
Lanço os olhos pelos vãos da casa e busco uma pedra familiar, uma picada; mas lá fora tudo morreu e tudo renasceu pra ser estranhado.
O pensamento chama o sol, porém este se fez verme entretido em devorar maduras nuvens de amora. Ou ele decrepitou, agora é estrela cansada.
À noite a chuva enrouquece; boca de cobra esguichando veneno. Os avós puxam os cigarros e sopram uma neblina bolorenta. Um sereno queimado se aninha pelos cantos como gatos de fumaça. A lenha do fogão, até então morta, cisma de transpirar, e as chamas chiam reclamando.
Vez em quando na porta aparece alguém de canoa. E esta casa o recebe
com unhas e armas, dizendo:
– Xô, que aqui não cabe mais uma fome.
Um vulto passa lá fora, no milagre de andar sobre a água. Os mais velhos avisam:
– Não olha, criançada.
Uma bisa murmura:
–A água achou os cemitérios!
Não demora, eu sonho com lápides rolando, a virar seixo nas correntes, peixes diligenciando os dentes nas epígrafes.
Certos pingos transpassam telhado; é uma segunda chuva, saída, porém de um céu de barro queimado em forno. Não terão sido feitas estas telhas com velhas casas de marias-de-barro?
Lá fora despencam canivetes de vidro que matam pelo monótono da cadência. Por que tanta água, meu Deus? Talvez o mar sofra sede e precise diluir mundos de sal.
De manhã meu rosto ganha susto: a água não dormiu e já me beija a sola. Penso no joãozinho, o de barro. Procuro a janela. Ali, só um torrão vencido. E a casa, até então agachada, se ergue. Era presa de caçada, se fingia de mato; entretanto neste momento finalmente reconhece que foi flagrada. E começa a se locomover. É a chuva. A chuva põe cauda de girino na moradia da gente.
Extraído do livro “I Prêmio Escriba de Crônicas, I.”. Vários autores. Piracicaba, SP. Equilíbrio (2011). Coletânea. ISBN 978-85-61237-48-6
– Descobri um tesouro, meu Brasil! – ele divulgava.
Era doido, e quase ninguém lhe dava bola. Envergava roupas rasgadas pelo cotidiano e puídas pela rotina. Todavia ele não fedia. O dele era um lunatismo inodoro. E era porque tomava banho diário, usando torneiras de praça ou aspersores de parque. E lavava os trapos toda semana.
– Descobri um tesouro, minha República Federativa do Brasil!! – ele repetia, ora com um ponto de exclamação a mais, ora a menos.
Incógnita para o mundo, a descoberta dele não era de pouco vulto e tinha de ser ventilada assim, em nível nacional:
– Descobri um tesouro, meus Estados Unidos do Brasil!!!!
O homem se alternava entre a Praça Raul Soares, onde regia maestrinamente o chafariz, e a Praça da Estação, onde cavalgava as leoas de pedra e consolava os humanos de mármore. Por uns meses, porém, escolheu o Viaduto da Floresta. E lá inventou a cobrança de pedágio.
– Pra passar, tem de pagar – comunicou, com formalidade, aos primeiros passantes da manhã.
A maioria considerou aquilo um estorvo e respondeu sem cordialidade, ao que o cobrador se encolheu e recuou. Outros transeuntes sacaram rápido como lidar com a situação. Uma senhora, por exemplo, replicou:
– Hoje eu só tenho um bom-dia, moço.
– O valor é muito alto, e eu não vou ter troco – o louco treplicou. – De acordo com a Lei Municipal 6.851, artigo 3º, a senhora tá isenta.
Nesse e noutros dias, usuários do viaduto o brindaram com as já raras moedas de um centavo de real. Outros ofertaram botões, clipes, notas de outras eras monetárias. O doido recolhia os bens, cedia passagem e, quando cessava o fluxo, se assentava pra contemplar o ganho – ao fim do que enfiava tudo num amarfanhado saquinho de papel.
Gostava de cobrar de sete meninas que se valiam do viaduto como acesso ao colégio Nossa Senhora das Dores. Sonhavam um dia serem professoras. Morriam de rir das caras que o mentecapto punha ao receber um grampo de cabelo, um pedaço de giz rosa, um órfão brinco sem tarraxa, uma embalagem de bala. Ele mais vidrava os olhos quanto mais quinquilharia visse. Elogiava cada item e agradecia a elas com um salamaleque de mensageiro de realeza e corte.
Certa manhã, ele apareceu com um calango. Vivo. Ensinado. Incomum: o bicho vestia terno feito sob medida. Ao ouvir uma palavra específica, o réptil se punha de pé no gradil de concreto do viaduto e posava como manequim.
– Quem faz trajes pra ele é um alfaiate liliputiano – o lunático revelou.
Até gravata o lagartinho exibia. Até bengala. Até luvas brancas. Até sapatos engraxados. Até cartola, que o investia com um ar de nobre canastrão. A criaturinha ficava devolvendo o olhar incrédulo dos citadinos. E se deixava retratar com os celulares. Gostava de selfies.
Mas ai de quem se atrevesse a intitulá-lo de lagartixa...
– Não! – o dono dele rebatia, com mil dignidades feridas. – Este é o senhor Tarauíra. E por esse nome se entende sua lagartal pessoa. Nada menos que o Senhor Tarauíra. Já foi difícil pra ele deixar de ser barão...
Vê-se que o termo lagartixa era um áspero gatilho. O homem, que já era meio fora de si, ficava três quatros.
E foi justo na hora que as garotas de uniforme faziam uma reverência ao requintado calango e iam embora que ouviram o biruta anunciar na plenitude de seus pulmões:
– Amanhã é meu aniversário, meu Brasil Brasiliano! Amanhã, eu faço anos!!!!
Ante isso, as sete confabularam combinando de trazer bugigangas especiais.
– Vou reservar pra ele um pente de catar piolho.
– Eu, um boné descorado.
– Eu, os óculos do meu ido avô.
– Um pen-drive estragado.
– Cadeado com chave perdida.
– Livro de bolso com página a menos.
– Colher.
Assim foram conchavando, distraindo-se com anunciar outros trecos de ocasião. Outras ninharias celebrativas. Até que se despediram.
Quando voltavam da aula, na manhã seguinte, lá estava o aniversariante. As meninas traziam os presentes; exceto uma, que, além de estar de mau-humor, esquecera de separar uma tralhazinha pro cobrador de pedágio.
O doido ficou sorrindo como se estivesse a ganhar os máximos prêmios de muitas loterias. Ao ajustar os óculos, ele ficou extático, a enxergar um novo mundo, as tintas frescas, as linhas domadas. Até as distâncias tinham vindo pra perto. Então ele reparou naquela garota que nada lhe ofertava, e quis saber por quê. Ela não respondeu. Virou-se pras amigas e disse que ia embora, pois estava com fome e com algo que talvez fosse a primeira cólica uterina de sua vida. E partiu.
– Eu vou-me embora também – o maluco assegurou por fim, encabulado com um adeus amargo tal chocolate com muito cacau.
– Puxa! – as seis lamentaram em coro. – Embora pra onde?!
Ele mencionou que pra onde ele marcharia era uma plaga tão remota que seria necessário criar um mapa só pra então poder assinalar as secretas longitudes e as sigilosas latitudes.
– Mas, antes, vou dividir meu tesouro com vocês. Pois eu descobri um tesouro, meu brasílio Brasil
Foi surreal ouvi-lo anunciar, sem ponto final nem de exclamação, o achado do seu desconhecido tesouro. Disse que elas, as quase mocinhas, haviam sido pedestres especiais, e as elogiou por sempre terem pagado o pedágio com “excelentíssima excelência”.
Daí ordenou que se perfilassem, espalmassem a mão e baixassem as pálpebras. Mesmo com o risco de se atrasarem para o almoço em casa, as meninas obedeceram. Quando lhes foi facultado abrir os olhos, cada uma delas notou que, sobre as linhas da vida, repousavam duas moedas: uma amarela e uma cinzenta.
– Minhas queridas amigas, não sei quanto a vocês, mas eu prefiro a cinza!
Foi a penúltima coisa que o sujeito disse. Acabara de se aposentar como cobrador de pedágio e agora teria a missão de ser nada menos que um 14-Bis, uma passarola ou uma geringonça do ar. A derradeira cena que as futuras professorinhas tiveram foi a de um aluado homem metido em farrapos limpos, correndo a mover os braços pra cima e pra baixo, como se a qualquer momento fosse voar. Saltou obstáculos imaginários. Assobiou como uma ave de incrível felicidade tropical.
Aterrissou a cem metros e gritou pra que todo o país ouvisse e soubesse:
– É meu aniversário, meu Brasil das Brasilíadas!!!! Meu aniversário!!
Mais tarde as estudantes saberiam que as moedas eram peças dignas de colecionador. Raríssimos itens da numismática. A cinzenta, de prata, era de 5 mil réis e datava de 1936, numa homenagem a Santos Dummont, pai e patrono da aviação. Já a amarela, de ouro, era de 10 mil réis e fora cunhada nos antigamentes de 1834. Possuía a efígie de um dom Pedro II imberbe porque menininho. Enfim: um tesouro.
Agora só dava pra enxergar seu vulto e ouvir uns ecos fragmentados:
– ... país nacional! Nação federal!
Texto finalista do 31º Prêmio Moutonnée de Poesia de Salto – SP (2023)
Ninguém conhece o caminho que Ariel tomou. Nem Neandro, o marido. Nem as amigas. Nem os companheiros dela de trabalho no banco localizado na Freguesia da Sé. Nem a polícia. Nem o caro investigador que a família dela contratou. Os cartomantes se declararam cegos.
Neandro olha para o lado: a mulher que costumava deitar a cabeça no travesseiro da direita se foi há quase um mês. Desde então toda peça de vestuário nele tem sido desagradável como papel molhado. E agora, quando Neandro se estica na cama, não o faz do lado do coração, mas sim no exato meio, onde o colchão remanesce alto e moço. Os amores fraturados são perigosos: infeccionam as lágrimas, as deixam lentas, com densidade de azeite. E ele tem feito aquilo de chorar dormindo. Ao despertar, a língua o sabe pelo áspero do sódio acumulado nos lábios.
Desde que Ariel foi embora, Macau não é mais a mesma. Tampouco o mundo é. A esposa de Neandro levou a bolsa com dinheiro e documentos, porém sumiu sem rastro nem recado – a não ser o poema, datado de sete meses atrás, que há duas semanas Neandro encontrou por acaso dentro do espelho de mão que fica na pia da casa de banho. Um papel rascunhado com lápis de pintar os olhos:
– Dez anos antes, você me conheceria doce como um silêncio em calda. Dez anos antes você aqueceria uma por uma as pedras do jardim de inverno, só para me ver os pés despidos. Dez anos depois o transparente sangue das nuvens corre sem parar nas telhas de Macau. Dez anos, e eu iria embora; meu adeus, a amassar a tulipa recém-colhida, pela covardia de não poder concebê-la seca. Dez anos mais tornam nocivo o ruído úmido do meu beijo em tua crosta desamparada...
Neandro interpretou no escrito anunciados sinais de renúncia e despedida. Deduziu que as cartas que nunca serão entregues são pássaros que quebram o ovo e são logo enforcados pelos fios do próprio ninho.
Ele puxa a porta do quarto; atrás descansa o bandolim. Sobre o instrumento, Neandro se curva com o afoito peso de um salgueiro, essa árvore já nascida com sede, que se debruça no rio ou lago para bebê-lo. O bandolim devolve o amplexo com notas de alento, atento à mão, que faz movimentos de luto pesado.
Quando se cansa, Neandro vai à casa de banho, desaparafusa o espelho de parede. Nenhum poema lá. Torna a pôr a lâmina de vidro no lugar. Detendo-se sobre o espelho, desconfia de que este era maior com Ariel. E com olhos surdos, ouvidos vesgos, ele sonda as vísceras do recinto, abertas na superfície especular.
Depois, sentado na beira da cama por cerca de uma hora, com a inércia de um doente mental ele se fixa num espaço sem quadros ou retratos, na parede. Pergunta-se o que teria feito Ariel se desenfeitiçar dele. Hálito perverso? Um desinteressante leque de feromônios? Conclui que perderam encanto os objetos azuis com que ele, pássaro-cetim, enfeitava o ninho. Talvez ronque. Cisma: teria se tornado um homem de flatulências notívagas? Acabou adormecendo tarde e despertou com cara de sabonete velho e ressequido.
Às 8h40 do dia seguinte, ele vai até Carlota, a também largada para trás arara-azul da esposa. Ambos ficam se olhando num silêncio carrancudo. Trinta dias antes, do nada a ave desatou a berrar. Já estava rouca quando Neandro ligou para um veterinário que atende em domicílio. O especialista não conseguiu sequer descobrir o que incutia tamanha ânsia de bater asas e gritar arregalada. Ofereceram a ela sementes de girassol, levaram-na para um galho da romãzeira; nada, entretanto, obteve efeito de serenar. Os ruídos terríveis que a esta altura a ave estava produzindo, afora a expressão de agonia que os protuberantes olhos protagonizavam, levou os dois – o médico e o dono – a considerarem a eutanásia. Por fim Neandro agiu a seu talante: levou Carlota ao lago do jardim e a submergiu uma, duas, três vezes. Então, respirando como um fole de penas azul-mineral, Carlota se pacificou.
Neandro desde então não lhe dirige a palavra. O bicho optou por uma mudez de grasnidos. Neandro tem dado à ave dióspiros meio verdes. Quem os vende é um brasileiro do Mercado Vermelho e os chama de caquis. Os frutos são tão adstringentes que, depois de comidos, não deixam Carlota movimentar o bico, o qual fica parecendo um agrafador à espera de tarefa. Por uma questão ética, Neandro nunca torturaria nada nem ninguém; ele passou a fornecer dióspiros imaturos pela instintiva superstição de que isso exerceria um poder terapêutico, pouparia ataques histéricos.
No correr da manhã seguinte ao achado do poema, Neandro se indagou se a esposa secretamente enxergava nele um derrotado. Quando ambos se conheceram, Neandro era um farmacêutico que havia recém-trocado o emprego de consultor numa indústria de cosméticos pelo cargo de gerente numa locadora de veículos. Anos depois, porém, largou os carros e reatou com a farmácia e os frascos.
Em casa, num quartinho de tralhas, ele improvisou um laboratório e lá se incrustou fazendo experimentos com aquilo que medrava no jardim e com o que por encomenda uma loja de flores lhe enviava.
Como Neandro fizesse segredo daquilo em que vinha obrado, Ariel conjeturava perfumes. Até o dia em que ele, com suares de maratonista, chegou com um prato cheio de pedrinhas coloridas que a ela pareceram preciosas, embora brutas. Eram obras-primas com sabores de erva-cidreira, chá, cravo, cipreste, flor de kiwi, todos naturais.
– Rebuçados de jardim? – a esposa indagou, chupando uma, a achar nos inventos do marido a graça que exala de fantasias de criança.
– Rebuçados, não – ele discordou. – Guloseimas de açúcar em ponto vítreo – corrigiu.
A mulher preferiu a de cidreira e a de cipreste. Seguindo o mesmo método de extrair óleos essenciais e se valer deles, Neandro ainda produziu doces de magaça, gerânio, camélia, lírio, gardênia e jasmim. Seu projeto alquímico incluiu um rebuçado de dama-da-noite; no entanto, o óleo volátil dessa planta o intoxicou e o pôs no hospital com as tripas na miséria e uma enxaqueca da qual ele jamais se esqueceria.
– Esta dor é uma ordem de morte ao portador – Neandro definiu, a fronte intumescida, os olhos injetados, as mãos em garra abrindo furos no lençol.
O médico escolheu morfinizá-lo...
Não, não: pelo menos aparentemente, desde o início a esposa apoiou o plano de uma fantástica fabriqueta de rebuçados de tisana e flor. Principalmente quando ele a chamou ao jardim e, cingindo-lhe a cintura, estendeu a mão com o seguinte fraseado:
– Essas plantas vão cuidar de nós quando formos velhinhos. – Acredito em você e nelas – Ariel comentou. – Muito.
Ele vinha visitando herdades em Taipa, Coloane e Ilha Verde em busca de parceiros e possíveis áreas de plantio em média escala. Tinha saído para algo assim quando a esposa se foi.
Sentado agora numa cadeira da sala, Neandro cogita as piores palavras para falar à esposa caso ela se digne a lhe telefonar desde uma terra distante. Assombra-o o que de mais medonho pode acontecer: um dia reencontrar a ex-mulher rodeada de filhos tidos sem ele. Neandro os imagina franzinos e aparentados a animais de peluche sofrendo sarna. Concebe Ariel gorda e flácida, mas ainda assim quer lhe dar um tapa de carinhoso castigo; com dentes amargos proporcionar nos lábios dela uma mordida de arrancar sangue; e daí beijá-la muito, condenando-a a um abraço que só seria desfeito a golpes de cassetete e investidas de pé-de-cabra.
Ele se ergue da cadeira para providenciar algo de que a esposa declinou: aprontar a mala. Se ele não tomar uma atitude, viverá o resto dos dias passando verniz em feridas que jamais pretenderão fechar. Ao puxar o fecho-éclair e desafivelar a primeira mala, tenta despertar as raivas grandes, contudo as tristezas maiores o entredisputam. A certeza de ter alcançado com Ariel a plenitude de amar guarda a traventa semente de outras duas convicções: a de que os oito anos de matrimônio foram efêmeros e a de que a cada dia serão menores.
Enquanto esvazia o guarda-vestidos, repara que os gestos mantêm o cuidado de sempre: toca as roupas como se novas, como se únicas. Ele as dobra com a meticulosidade de quem concebeu as peças e as costurou pela primeira vez. Neandro pensa que com a boca sempre fez cócegas em Ariel, entretanto só lhe restaram caninos e incisivos ociosos e limpos. Sente os lábios tortos pois que cientes de que lhes cabe a amnésia do gosto que a esposa até um mês atrás lhe permitia experimentar.
Olhando o vestuário a povoar a cama, parece que Ariel se foi nua. A mulher urdiu asas transparentes e resolutas, e a vida soprou em sua nudez uma inadiável libidinagem de voar. Ao pegar nos sutiãs, Neandro conclui que, dos seios da esposa, as mãos dele vão guardar recordação própria. Os mamilos de Ariel vão envelhecer junto com os dedos dele. Neandro cai em si: duas malas não abarcam tudo. E só aí atina para a coleção de sapatos.
Sai para espairecer. Num mesmo táxi, vai ao Largo do Senado, ao Museu de Macau, ao Jardim Lun Lim Ioc, ao Templo Kun Iam – lugares onde passou com Ariel numa ocasião inaugural para os dois. Agora Neandro assiste à multidão jogando com crueldade, a mostrar os cabelos da ex-esposa nas costas de outra mulher. A voz dela amalgamada a uma saliva anônima e mais viscosa. O perfume barato dela desabotoado noutro corpo. Apesar de liso e nivelado, o piso onde Neandro procura Ariel é tão escabroso que os pés se chagam mesmo no interior dos sapatos. Parece até que o sangue ignora as solas e transcreve nas pautas do passeio uma partitura real.
É com mais angústia ainda que Neandro pede ao taxista para rumar ao Farol da Guia. Ali se deixa estar perante o mar por eternos vinte minutos, com cara de homem degredado, o taxímetro sem cessar.
– Agora, para a Praia de Hac-Sá, por favor – ele orienta.
Para sossegar as suspeitas de calote no motorista, Neandro paga a pequena fortuna que custou a corrida até então. No caminho ele fica segurando o papel da poesia do espelho, descobre que o sabe de cor.
Já na praia, ele fica escutando os animais na mata da orla, sem enxergá-los. As árvores se entregam a uma ventriloquia que imita gorjeios, cigarreado, cricrilos quase eletrônicos, o gume do assobio dos pássaros. Ele tira os calçados, as meias, e se sente falso: embora tenha palmilhado com a esposa oito anos, os pés o desmentem, pois estão rosados e sem a malícia dos calos.
Retorna por fim à casa. Outra vez descalço, ele consulta os pés maquilhados de areia preta. Depois, com uma disposição de cágado, Neandro percorre o jardim da casa. Os canteiros parecem velhas desiludidas, sem filhos, falando mal dos outros jardins. Até que ele toma uma decisão truculenta: foiçar tudo. No futuro de um mês ou dois, haverá ali uma grelha para churrasco, lá um coreto, acolá um quarto com aparelhos de ginástica, aqui um belveder, um campo de tênis em qualquer parte.
Neandro se achega à piscina, que tem bordas como redondos contornos de ameba e que Ariel tanto quis que transformou em lago, arquiteta paisagista nata que era. A ex-esposa um dia esvaziou a piscina, a encheu com desclorada água da cisterna e pôs ali plantas aquáticas do tipo flutuante e da variedade submersa, como vitórias-régias, nadabaus, flores-de-lótus e uma variedade de lírios aquáticos que quando floridos se assemelhavam a arranjos de papel de seda niponizados.
– Meu amor, o que a gente faz com uma lentilha-d'água: planta ou afoga? – Ariel questionou com brotos na mão.
Na ocasião o marido não soube corresponder ao gracejo. Permaneceu contemplando a mulher que, naquele meio-dia distante, soltou no lago filhotes de carpa, fazendo questão de pegar um por um e conservá-los no transitório aquário que conseguia compor com as mãos em concha, cada alevim ziguezagueando assustado pelo verso escrito na linha da vida.
Recordando-se do cardume agora, Neandro estremece. Julga-o morto, só as espinhas nadando em grupo, numa fome sincronizada. Basta no entanto arremessar ali cascas de pão trazidas da cozinha para que os vultos alaranjados e rosados fervam num trecho.
A ideia de desajardinar soa mais convidativa quando Neandro ideia aterrar o lago. Agora sim terá o que contar a Ariel se porventura ela fizer uma chamada telefônica. Terá o que relatar, caso ela ouse ligar para “acalmá-lo” com escusas que, quando muito, terão feitio de patacas falsificadas. Há um projeto de destruição prestes a ser posto em andamento. Para Neandro, trata-se ou de tomar uma atitude, ou de se contentar daí a anos com um sentar à mesa e a sós degustar o mal passado cadáver das lembranças.
Deu alguns telefonemas e foi dormir. Pulou da cama com as últimas escuridões da noite, ciente de que a capacidade de madrugar é um dos indispensáveis atributos de um verdugo. O jardim estava em tão más condições que em certas partes o facão colidiu com plantas em estado de lenha. Neandro se atirou com entusiasmo de gafanhoto. Atacou até a hera no muro, com um sacho. No fim a visão de aridez o perturbou, e ele se sentiu mais deserto que o terreno calvo e cru.
Mal havia começado a guardar as ferramentas quando o pessoal de um estabelecimento filantrópico chegou numa camioneta. Tinham vindo recolher as duas malas e os seis sacos com os calçados e o restante das vestimentas de Ariel. Neandro também já deixara pronta uma comodazinha com cinco gavetas cheias de bijuterias e joias. Aproveitando o transporte, Neandro ainda lhes empurrou três esculturas de alabastro, quatro quadros que retratavam cavalos em bando, uma coleção de xícaras pintadas à mão por velhinhas cegas de Hong Kong, corujas de macramê produzidas por hansenianos de Minas Gerais, Brasil.
Um trio de jovens carregou tudo – e Neandro apreciou que o tivessem feito com zelo. Ele evitou qualquer arrependimento precoce mantendo fresca na mente a promessa de que tudo seria leiloado ou vendido em bazares, com a renda revertida para obras humanitárias.
Outra vez sozinho, Neandro se dirigiu à casa de máquinas da antiga piscina e operou para que tivesse início a drenagem da água. De improviso, chamou um vizinho piscicultor e lhe ofereceu o cardume de graça. Para alívio de Neandro, a oferta foi aceita: ele não tinha ideia do que fazer com as carpas quando a água secasse e elas começassem a saltar até deixar o lodo batido em castelo.
Eram as três da tarde, e o ar tinha um tom acobreado, quando os corpos surgiram. No fundo do reservatório, em meio às plantas, dois cadáveres se fizeram notar. O vizinho recuou dois passos e pôs a mão contra a boca. A primeira atitude de Neandro foi mirar com a curiosidade de um menino. Depois se atreveu a tocar as carcaças levemente, com a ponta da tesoura de podar. Estavam agarradas uma à outra, atadas ainda pelos caules das plantas aquáticas, as quais semelhavam serpentinas de carnaval. O cabelo de ambos os mortos se mesclava aos filamentos vegetais, o que em seguida deu a desagradável impressão de constituírem dois gigantes bulbos imersos, vestidos, inchados e carcomidos. O nível da água descera até a altura de um palmo e meio, e os peixes, obesos e compridos, sem moviam ariscos, aturdidos com um mundo de súbito tão acanhado.
Demorou para Neandro aventar que uma das pessoas podres fosse Ariel. O entendimento disso o fez cair sentado. O agora viúvo só não se afogou na tristeza, porque brotou nele o orgulho ferido: a esposa morrera abraçada a outro. Enlaçada a um amante – ainda que Neandro não conseguisse compreender as estranhas e mortais circunstâncias desse amor daninho. Permaneceu sentado mesmo quando o vizinho tentou erguê-lo pelos sovacos. Minutos depois a polícia encontrou Neandro cabisbaixo, ensimesmado, a tesoura de podar ajeitada nos braços dele como se fosse criança de colo. Um dos policiais se aproximou de Neandro dizendo que, numa circunstância como aquela, não poderiam permitir que ele teimasse com um objeto perigoso daqueles na mão; ao que o dono da casa retrucou que uma podadeira, tão afiada e pontuda como aquela, continuaria onde estava, e quieta, desde que ninguém tentasse tirá-la dele.
Enquanto isso, um agente de polícia fisgou, no tanque, uma bolsa feminina vermelha. Além de batom, molho de chaves, kit de maquiagem e dinheiro, continha documentos de uma mulher chamada Ariel Cantareira Saial. Neandro continuou onde estava; só se moveu para mudar de braço o utensílio de jardinar que acalentava. No bolso de trás das calças, o segundo corpo portava carteira de couro falso, também com documentos de identificação. Neandro o desconhecia pelo nome, tampouco o reconheceria com tantos traços de morte. Na mão esquerda o morto segurava uma arma com seis balas. A mão se achava tão avariada pelos peixes que praticamente só os ossos se fechavam em torno do punho da pistola.
Neandro depõe no chão a tesoura, se levanta. Um policial se apressa a alertá-lo para a sábia verdade de que, antes de uma avaliação técnica e rigorosa, qualquer conclusão será precipitada e burra. Neandro não lhe dá ouvidos, pois sente despertar um faro de marido cheio de amor e repleto de ódio. Encaixa evidências e conjecturas: um mês atrás, um criminoso deve ter invadido a casa. Ou então, em vez de invadir, se aproveitou do momento em que, por controlo remoto, Ariel abria o portão. Daí o bandido a abordou e a obrigou a voltar para a residência, com a intenção de quiçá estuprar, talvez roubar, porventura matar. O malfeitor escolheu levar Ariel para o interior da residência, longe dos olhares da vizinhança. Ela provavelmente obedeceu já horripilada com o que a própria imaginação ia criando. Quando Ariel e seu algoz estavam passando ao lado do lago, ela deve tê-lo empurrado contra a água. Ele caiu; porém puxou junto a vítima... Neandro relanceia a verde rede composta por vitórias-régias, lírios, lentilhas-d'água, e sente os pulmões contritos quando concebe a cena de um homem mau tentando dominar Ariel dentro da água.
E então ela revidou dando no estranho o pitônico abraço dos que estão se afogando. Neandro imagina, talvez devaneia, com certeza padece.
– Ariel... – é tudo o que Neandro consegue dizer à beira do tanque.
O vizinho desiste de tentar aconchegar um homem que se desenvencilha de tudo e de todos, e, autorizado pela polícia, começa a pôr os peixes dentro de baldes com água. Por oito anos Neandro proferiu o nome da esposa. Foram inúmeras vezes; no entanto ele agora é um bebê no balbucio da palavra que fazia a mulher olhar para ele. Dói muito em Neandro o instante em que o enfunado peito da esposa pulsa. É tão apenas uma carpa presa entre a pele e o vestido.
Depois, no momento em que Neandro é quimicamente confortado por um médico e um enfermeiro, o reservatório já perdeu toda a profundidade. E Neandro, fazendo um esforço no limite do seu coração partido, pede que o vizinho ligue para uma instituição filantrópica, garantindo que ele, Neandro, comprará todos os itens que foram doados poucas horas atrás.
Sem o dióspiro do dia, Carlota começa a bater as asas e a vozear como um alarme disparado.
Extraído de “Quarto Crescente – contos e outros escritos IV”. Vários autores. Rota das Letras Festival Literário de Macau. Praia Grande Edições (2016). ISBN 978-99965-773-5-2
Maria Felipa de Oliveira é um dos 43 nomes citados no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria, guardado ainda hoje no máximo memorial cívico de Brasília. Faz pouco tempo que historiadores, num trabalho de arqueologia documental, começaram a tirar os duzentos anos de pó que repousam sobre a figura dessa grande mulher. Dos poucos consensos que há sobre ela é que descendia de escravos, lutou pela Independência do Brasil e finou em 1873. Sua façanha, que entraria para a História, seria comandar uma ação que reduziu a cinzas uma frota portuguesa que aguardava na Ilha de Itaparica a ordem de ir bombardear a Baía de Todos os Santos e tomar Salvador, capital da Bahia.
Mas afinal quem foi Maria Felipa antes e depois da Independência? Se por um lado jazem dois séculos de poeira sobre essa personagem, por outro lado o imaginário popular sempre cuidou de mantê-la lustrada. Maria Felipa veio ao mundo no primaveril 19 de setembro de 1803. Foi setemesinha. Era pra ser do signo de escorpião, mas a pressa a fez virginiana. Mirrada demais, induziu os pais ao erro de achar que não vingaria. Mas dias depois quem partiu foram eles, eletrificados pela mesma enguia pisada enquanto catavam mariscos. O casal se foi de mãos dadas, tremendo e lagrimando em 860 volts.
Restou aos avós Dora e Caulim, sudaneses alforriados, criar o bebê. Recorreram a uma milenar receita de nutrir recém-nado: leite de cabra fervido, mesclado com água de coco coada, um ovo de rolinha e outro de colibri batidos, e gotas de mel de jataí. Maria Felipa arrulhava tanto no berço que os velhos viram nisso um efeito colateral dos ovos de pombinha. Importa que a primeira palavra da neta-filha foi tartarugada, um prodígio de sílabas para alguém de apenas seis meses de vida. A essa altura já tinha o apelido de Fel.
Tão logo ela foi capaz de coordenar os dedinhos, o avô a ensinou a tecer, enrolar, desenrolar e lançar redes. Ele mostrou como escolher o bambu para a vara e a como fazer anzol de osso. Já a avó a instruiu na catança de marisco. Cedo, Fel entendeu que a despensa jazia dentro da terra ou sobre ela: batata-doce, mandioca pra farinha, amendoim, abóbora, banana-pacova, café, couve, milho, tanchagem. Até água de cisterna.
Aos 4 anos, ainda era muito mirrada. E, talvez por isso, coleguinhas a tenham enterrado na praia, numa brincadeira cruel. Quem a encontrou foi um velho catador de caranguejos que estranhou os insistentes pulos de um carcará sobre um único ponto da areia. Instantes depois, o caranguejeiro desenterraria, aterrorizado, uma criança que, apesar de roxa, tentou assustá-lo gritando “Bu!” e cuspindo uma paçoca de sílica. Noutra vez, Caulim a pegou na arrebentação tripulando uma jangadinha feita por outras crianças.
Fel era ingênua com força. Olhava as galinhas-d’angola e as imaginava capazes de fazer a casca do ovo com cada grão de areia que ciscavam e bicavam. A gema era ouro de comer, pepita envolta em opala branca de mastigar. Cria em tudo. Caulim à noite contava histórias da milenar Núbia, antigo nome do Sudão. Como a de Apedemek, deus da guerra com cabeça de leão, olho e língua de cobra, corpo de gente. A menina arregalava as íris, concebendo o leão como uma grande onça-parda que usava uma cabeleira de mico-da-cara-dourada e um rabo cuja extremidade lembrava pavio espevitado.
Aos 6 anos, apanhou numa briga de fedelhos. Chegou com dois dentes na mão.
– Nossa guria vai envelhecer apanhando igual cachorro sem dono – a avó Dora se queixou. – Tem menina com 3 anos que já é maior que ela.
O velho decidiu abrir com a pequena os arcanos da capoeira. Deu uma banana à proibição de ensinar a luta a uma mulher. Prevaleceu a obrigação moral de ensinar alguém mais fraco a se defender. Ele aprendera a arte com angolanos que a chamavam de kapwila, termo umbundo pra significar ‘pancada, tabefe, surra’. À noite, ele levou a neta a uma clareira no bosque. A pirralha adorou aquilo que parecia demais uma dança.
– Só que é uma dança de ferir e matar – Caulim advertiu. – Num esquece isso.
Com o passar dos meses, a menina foi se afeiçoando a chutes, pulos, giros, taponas e rasteiras. Duplo aprendizado: o de capoeirar e o de manter isso em segredo. O velho se aprazia de ver que a menina cada vez mais ia semelhando um ladino grilo vivaz.
A infância de Fel seria marcada também pela visão dos imensos canaviais, plantações que multiplicam a voz do vento e a faziam áspera. A menina e sua turma iam até lá, empurravam as canas, as deitavam e daí as cascavam com clandestinos dentes de leite. Iam colhendo a casca e o bagaço na barra dos vestidinhos – pra apagar rastros. Já nas plantações de trigo que aloiravam a terra, ninguém podia pisar. Fel amava nadar. A ilha era guardada por 15 quilômetros de recifes, responsáveis por infinitas piscinas naturais mornas e salgadas. Cansada, sesteava sob o som de ninar dos coqueirais.
A noite em Itaparica sempre seria perigosa, já que se conservava fresca a lembrança do vício que antigos tupinambás tinham de canibalizar inimigos. Quase todos os ilhéus, até os marmanjos, dormiam aninhados nesse medo ancestral e sem raça.
– O último a chegar é a filha do bispo! – a criançada gritava antes de correr, pervertendo o dito O último a chegar é a mulher do padre, numa referência a dom Pero Fernandes Sardinha, bispo comido pelos caetés, várias décadas antes.
Outra figura a povoar o imaginário de Fel era a do português Diogo Álvares Correia, o Caramuru. Inesquecível não pelas inúmeras esposas tidas, nem pelos incontáveis filhos deixados, mas porque seu nome significava ‘moreia’. Para os índios, ele era um sujeito capaz de trocar de pele e virar um viscoso peixe de sorriso tenebroso.
Caulim parou de respirar um mês após ensinar à filha-neta os saltos mortais. Sobraram ela e dona Dora. A garota meio que só vinha esperando essa perda, pra danar a crescer. A partir daí, os vestidinhos de algodão durariam não mais que semanas:
– Cê tá parecendo largata que só escolhe casulo menor que ela! – a vó rabujou.
Rabugice fingida, pois com deleite de assistir à pirralha espichar. E muito espanto a velha teve quando Fel lhe pediu pra não vender o barcote do avô. Ela pretendia ir buscar o peixe de cada dia. Disse e trouxe, como viria a trazer dessa manhã em diante.
Em Itaparica se caçava baleia. Vendia-se a carne de comer, o óleo de iluminar, os ossos de moer e dar pro gado. Mas a mãe-vó e a filha-neta não se aventuravam nisso. Gostavam era de ir aos muitos mangues da ilha. Nessas florestas afogadas, matavam saudade de jantar siri. No início, Fel receava enfiar o braço na escura toca dos crustáceos, por pavor a picada; depois já nem sentia a garra dos bichos.
– Tem caçador que, quando caça, sangra – Dora dizia. – Aprende então, pequena: pra viver bem, tem que saber morrer um tiquinho.
Foi por essa época que Fel reparou que, em várias fazendas de Itaparica, negros viviam acorrentados. De dia labutavam vida de touro, à noite eram encurralados em senzala. Perto do mercado, a garota viu um moçambicano no pelourinho, apanhando por fugir. Mais tarde, ela iria se inteirar sobre os escravos que escapuliam e se afogavam no mar pelo lado ocidental de ilha – ali havia um único e aquático quilômetro apartando o continente, porém era uma água cheia de profundos descaminhos.
Durante a festa de Nosso Senhor de Vera Cruz, no 14 de setembro, Dora e Fel iam à missa. Ambas e a multidão assistiam à celebração de longe, com a planta do pé no átrio, pois gente de cor era interdita em sagrada casa de branco. Enquanto o padre baforava o hermético latim, Fel recordava o misterioso vulto montado num corcel branco que, de 7 em 7 anos, percorria uma Itaparica noturna. Uns diziam ser o próprio Nosso Senhor abençoando; outros viam o espírito do segundo Conde da Castanheira, condenado ao limbo por se negar a entrar no céu sem seu brasão de armas, objeto roubado dele pelo corsário francês Jacques de Sores e jamais restituído.
Africanos e descendentes, se acaso quisessem, que fossem pra suas igrejolas de palha. Escravos, alforriados e livres filhos negros também eram proibidos de cruzar o portal dos sobrados e o pórtico dos paços barrocos. As festanças nos solares das fazendas constituíam um mundo para o qual não tinham a senha os sudaneses, os angolanos, os moçambicanos, os minas, os benguelas ou os que tivessem tal ascendência. Lugar perfeito pro gentio eram a taipa, o pau a pique, a cubata, o cafofo, o terreiro, a plantação, o mato, a eira e a beira. Em suas celebraçõeszinhas, o poviléu que se contentasse com batuques, umbigadas, lundus e tungas – sem piano, craviola ou violino. Fel sofria isso; se avexava.
Avexamento baralhado com deslumbre: por exemplo, a menina se boquiabria com a alva Marquesa de Nísia, uma das governantas de Itaparica, a ponto de questionar:
– Existe preta marquesa? Tem condessa mulata? Baroa cafuza? Duquesa parda?
– Na sua cabeça, tem – Dora ironizou. Até lembrar: – Se bem que existiu a Chica...
O sonho de inscrever seu nome na História nasceu na noite que a vó soprou o “Era uma vez uma poderosa Chica da Silva de Diamantina e dos Diamantes”. No dia seguinte, treinou capoeira fantasiando que fosse uma capoeirista com título de marquesa.
De tanto visitar a parentada noutras partes de Itaparica, Fel aos 12 anos já sabia que a ilha tinha silhueta de banana-da-terra. Conhecia o Forte de São Lourenço com sua cantaria, sua cal e seus canhões. Num arrepio, ouviu que ali havia sujeitos encarcerados, perpetuamente constrangidos a todo dia ver um oceano que não tocariam outra vez. Ela desejou que sua capoeira bastasse pra que ninguém jamais conseguisse pô-la numa cela.
À noite antes de dormir, a pequena se abraçava à velha Dora, pitava cachimbo por tabela e ouvia casos de antigamente. Como o do dique de Itaparica, construído no norte da ilha. Redes lançadas ali traziam às vezes porcelanas francesas ou bizantinos talheres de ouro – eco das riquezas escondidas por jesuítas nos 1700. A velha narrava:
– O dente da lama no dique rói até pau de arca. Tem vez que um itaparicano valente mergulha lá atrás de tesouro... Aí vem um jacaré da foz do Jaguaripe e boca ele.
Aos 13 anos, Fel virou mocinha. Continuou se banhando no mar, embora a vó desaconselhasse. A velha mandava; a filha-neta desatendia. Quanto mais alta ia ficando, mais ia nutrindo destemor. Querendo provar a tanta coragem que grassava em si, aceitou o desafio que uns rapazes faziam entre si numa roda: chupar manga e beber leite. Gerou assombro o fato de ela vir a sobreviver a esse elixir da morte. O povo creditou a proeza ao mel de jataí mamado por ela na tenra infância: as abelhas teriam fabricado o fluido com néctar de flores venenosas, que agora atuavam como antídoto.
Com 15 anos, foi a Salvador pela primeira vez. Disfarçada de rapaz. Porte pra enganar, ela já possuía. Envergou calça e camisa roubadas de varal alheio. Os seios de mentira, ela prendeu com faixas. E se apresentou num barco que, vindo de Morro de São Paulo, tinha aportado na ilha pra colher quem fosse ao festival de capoeira na capital.
– Cê é filho de quem, moleque? – o barqueiro a interpelou.
– Minha mãe diz que eu sô tataraneto do tataraneto do Caramuru – ela disse, a engrossar a voz, entregando a moeda da passagem (pega escondido de dona Dora).
Os quase 30 quilômetros foram uma odisseia. O mar era um pano que se desenrolava conforme fosse olhado. Fel foi engolindo aos litros a ideia de um mundo mais amplo que tudo. Achou Salvador gigante: casario profuso (algumas casas até com quatro andares!), um excesso de ruas (várias com pé de moleque), multidões que só podiam estar em calendário santo, um vozerio de cigarra de pôr a gente tonta. Foi ali que ela viu seu primeiro leilão de africanos, junto com barricas de pinga e caixas de açúcar. Eram portugueses os que capturavam as pessoas na África e as vinham vender. Os lusos.
Voltou da capital da Bahia com um ranço de europeus. E com o orgulho de não ter perdido sequer uma luta. Trazia encaroçados o braço e a canela; cada nó da mão com tamanho dobrado e pintado de urucum. A boca inchada e com sangue pisado, o olho roxo. Mas quem no barco de volta a Itaparica estava ileso? Valia que a maioria dos rabos de arraia, cangapés, golpes de arpão, voa-pés e molinetes desferidos por ela haviam levado ao chão 20 adversários. No fim, um dos mestres até a convidou a entrar na irmandade.
Coisa que jamais faria. Itaparica tinha tudo que uma felicidade poderia querer. O mar de Salvador era quase frio e ninguém o tinha domado ainda. A capital distava demais da sua velha. Afastar-se de Dora seria negar mãe e avó numa só virada de costas.
Quando Fel retornou a casa, a dona tomou susto. Desconheceu aquele rapaz todo machucado que parecia ladrão surrado por gatunagem. Mais atônita ainda ficou quando, sem cerimônia, ele tirou as calças e pegou uma saia pendurada numa estaca. Agora sem blusa e faixa, os seiozinhos acenaram. E o moço gargalhou familiar, tal como a filha-neta.
– Cê me mata de tanta agonia de desespero, menina! E tá istrupiada por quê?!!!
A jovem mostrou um bracelete bordado. Dora conhecia aquele signo de prêmio, mas custou a juntar as peças da façanha da moça. Daí sorriu contrariada. Praguejou feliz. Por fim a abraçou, e serviu duas doses de pinga. Fizeram tim-tim em canequinha de barro.
– Ontem era seu avô aí, com a mesma idade sua, o mesmo tanto de calombo, esse sorriso gaiato e uma pulseira assim – a velha lagrimou. – Promete num fazê mais isso...
Fel jurou. Itaparica era seu lar. Ela precisava ir dormir sabendo que tinha mar cercando seus sonhos por todos os lados... Essa era a verdade. E também era verdadeiro o fato de ela ter uma alma transbordando de bravura. E por isso viriam a fermentar nela os ideais de um Brasil finalmente livre da boca de morcego de Portugal. Sim: os saveiros que iam entregar óleo de baleia em Salvador passaram a voltar com notícias de uma guerra pela independência sendo costurada a ponto miúdo e com agulha de segredo.
Ninguém de Itaparica ficaria imune a isso. Haja vista as reuniões secretas que passaram a ocorrer ali já em 1821. Uns achavam vergonhoso a ilha ficar de fora do movimento de liberdade e declararam apoio (ainda que velado) às forças revolucionárias sediadas na capital da província. Outros até queriam tomar partido, mas temiam as marciais penas de degredo, fuzil ou forca. Já outros defendiam lealdade irrestrita ao Reino, que no fim faria um desfile triunfal pisando sobre as inertes cabeças dos rebeldes.
Fel definitivamente antipatizava com lusitanos. Enxergava-os na raiz de tudo que odiava. Portugal permitia que uns fossem senhores de muita terra enquanto outros nada tinham; que uns tivessem palacetes e outros habitassem casebres; que se escravizasse e vendesse; que se cobrasse tanto imposto; que se carregassem as riquezas para além-mar.
A neta de seu Caulim foi das poucas – talvez a única – a antever que Itaparica não precisaria ir à guerra, pois esta viria a Itaparica. Na ilha havia o Forte de São Lourenço, apetitoso em tempos bélicos (que o dissessem os holandeses que o haviam tomado nos idos 1600). Então por meses se pôs a arquitetar o que uma mulher pobre como ela poderia fazer quando aportasse a marinha portuguesa vinda do Reino. E foi capaz de bolar um pueril e pitoresco plano – o qual pôde ser posto em prática em outubro de 1822, quando oito canhoneiros lusitanos ancoraram muito próximos à sede da ilha.
Durante uma reunião de homens que perdiam tempo discutindo se tomariam atitudes ou conservadoras, ou liberais, ou moderadas, Fel apareceu de supetão e desafiou:
– Eu cobro duas sacas de feijão pra pôr aqueles barcos fora de combate.
– Uma mulherinha contra uma esquadrilha?! – os homens riram, contrariados com o atrevimento de uma preta que vinha meter a colher em assunto de machos.
– Aposta baixa; prêmio alto – ela rebateu. – E, se eu falhar, pago quatro sacas.
Dias depois, Fel e duas primas foram de barco até a Praia de Manguinhos, onde repousava a flotilha portuguesa. O dia e o horário haviam sido meticulosamente escolhidos: naquele 18 de outubro a lua era nova, e a maré estava lacustre. O barquinho de seu Caulim ia de lanterna apagada porque Fel conhecia, de cor e navegado, a faixa dos corais. Vindo sorrateiras de alto-mar, as moças estavam armadas, mas não com mosquetes nem com espadas. E sim com... cupim. Centenas de milhares deles. Dias atrás, Fel espalhara a exótica notícia de estar comprando cupins – desde que vivos, desde que postos em sacos ou bexigas fechados, e desde que entregues em data específica. Muita gente humilde apareceu e foi embora feliz de trocar uma praga por feijão-mulatinho.
Coube a Maria Felipa de Oliveira subir ao convés de cada canhoneiro e abrir cada saco para os bichos saírem. Entrou como uma sombra, se esgueirou como brisa. Os insetos tiveram toda a madrugada para se meter por cada orifício e fresta, escotilha e camarim. Quando o comandante da flotilha se deu conta da infestação, já era tarde. Achando que a cupinzama provinha da água, ele deu a urgente ordem de partir e rumar a um estaleiro de Salvador. Que as perdas eram irreversíveis foi divulgado 15 dias depois.
Apesar de esse episódio render respeito à filha de dona Dora, a grande reputação ainda estava por vir. Batalhas pela Independência do país sediadas na Bahia já vinham se desenrolando desde junho de 1822. No início de 1823, Fel já liderava quase duas centenas de homens e mulheres – entre negros, tupinambás, tapuias, brancos, mestiços – munidos apenas de facão, porrete e encanto. O alvo: 42 embarcações lusitanas comandadas pelo coronel Madeira de Mello, que ousaram ancorar na ilha.
Era o 7 de janeiro. Poucos dias após a chegada, os lusos viram se aproximar pela praia uma vistosa procissão de 40 mulheres. Havia índias, negras, mamelucas, cafuzas. Escolhidas a dedo. Uma delas era Fel. Todas lindas e com muitos dentes. Bem vestidas e perfumadas. De unhas feitas, cara pintada. Usavam sandália e luvas brancas. Traziam na mão direita uma travessa com quitutes., ou uma cabaça de cachaça, ou café recém-passado. Na mão esquerda, arrastavam cada uma um galho florido. Depois de dar boas-vindas entoando vivas ao rei dom João VI, o mulherio exibiu um selvagem ar de sirigaitas que fascinou os soldados, os quais haviam ficado dois meses sem ver um vulto feminil.
Um dos marinheiros indagou o porquê do galho com flores.
– A gente varre a praia pra todo varão de Portugal que for passar – Fel mentiu.
E deu um sorriso de sereia negra. Desde os conveses, a olho nu ou por lunetas, os demais soldados vislumbraram a paradisíaca promessa de um cabaré a céu aberto, gratuito e de luxo. E acorreram à praia. Daí a um tempo, estavam todos embriagados, já despidos. Foi nesse estado que levaram uma insólita surra de cansanção. Os galhos floridos que a mulherada trazia era de uma urtiga também conhecida como arre-diabo. Caule, folhas e até pétalas cujos pelos causam queimadura e arrancam vergões.
Até então oculto nos coqueirais, o restante do grupo liderado por Maria Felipa entrou em cena. Os rebeldes dominaram os soldados, os amarraram, cataram da areia suas armas, vestiram seus uniformes militares e rumaram à esquadra em botes silenciosos. Renderam a tripulação de cada canhoneiro. Atearam fogo em todos. A pólvora no paiol dos porões gerou 42 fabulosos estrondos, ouvidos até de Salvador. Até da Ilha de Tinharé. Pra quem soube escutar, os estouros prenunciavam uma vitória brasílica. As batalhas só terminariam meses depois, incluindo uma tomada do forte pelos nativistas, mas com certeza a ausência de uma esquadra fez muita, senão toda a diferença.
Maria Felipa de Oliveira viveu até 4 de julho de 1873. Com tempo de sobra pra testemunhar: o Brasil dos imperadores continuava tão injusto quanto o Brasil dos reis. Resignou-se vendo que Itaparica continuava ilha e linda. Fel partiu anciã e serena. E matriarca: com um certo Gonçalo, teve 9 filhos, 26 netos, 35 bisnetos, 11 trinetos. Desvelou a capoeira a toda descendente que quis aprender. Em seu último dia, se levantou e foi catar mariscos. Havia um céu muito julino e azul. Tomou água de coco. Segurou o mais recente trineto nos braços, e a surdez não a impediu de ouvi-lo proferir a primeira palavra: “caranguejada”. Almoçou moqueca de cação. E morreu às 13h15, em plena sesta. Sorrindo por ver, pela primeiríssima vez, de cima, o lugar onde tinha sido tão feliz.
Extraído de “Oráculo Inverso e outras Histórias sobre a Independência do Brasil”. Apresentação de Pedro Serra. Textos selecionados do VI concurso de relato breve “Cuéntame un cuento”, do Centro de Estudios Brasileños da Universidad de Salamanca. Ediciones Universidade de Salamanca (2023). ISBN 978-84-1311-728-7.